Há livros que nos fazem voltar a lugares, a tempos e pessoas. Les Portugais, da autoria de Olivier Afonso, lusodescendente, nascido nos anos 1970 de um monçanense e uma felgueirense, poderia, por um triz, ter sido eu. Mas é certamente quase toda a minha família do lado materno. Todos emigraram para França nos anos 1960 e 1970. Tiveram filhos e foram ficando por lá. Alguns, muito poucos, regressaram. Les Portugais levou-me a Moledo do Minho, aos longos verões, à casa dos avós, aos cigarros Gauloises, aos nomes de terras estranhos, Lille, Roubaix, aos sotaques híbridos e exóticos de todos, aos nomes mesclados de tradição nortenha e modernidade (ou a ideia dela) francesa, aos carros com matrículas invulgares, às brincadeiras bilingues entre primos. Para uma criança, todos estes elementos excitavam a imaginação, levavam-me a ainda outros lugares – os da imaginação – mas também me revelavam uma realidade cruel e dura. Não foi fácil para aquela geração com poucas ou nenhumas qualificações vingar num país completamente diferente. A língua francesa não é intuitiva para um português, a sociedade francesa daquelas décadas estava na vanguarda do desafio aos costumes, a política e a democracia estavam longe da ditadura da direita conservadora e católica. Ir para França era “dar o salto”. E que salto, de facto. Para uma realidade desconhecida que foi na maior parte das vezes mais hostil que acolhedora, que tratou os portugueses como cidadãos de segunda, os homens das obras e as porteiras de França. Os “portos”, a mimetizar e caricaturar o sotaque e a língua portuguesa. E não é sempre assim para os emigrantes? Talvez. Mas houve naquela emigração específica uma sobre-humildade e até uma vergonha de se ser português lá que explodia depois num sobre-orgulho nacional cá.
A minha emigração é diferente, mais qualificada, mas será que sofre do mesmo mal? Muitas vezes parece-me que o português emigra sempre. Sobretudo na imaginação. Somos ex-migrantes, os que saem constantemente, os escapistas. Comentamos, sempre que nos encontramos, como Portugal não funciona, como tudo é mais lento, mais difícil. Mas sempre que há uma ida a Portugal, há uma alegria (inesperada e surpreendente sempre, no meu caso) e uma sensação de pertença única. Um emigrante aterrado em Lisboa é um lisboeta da Mouraria ao fim de dois minutos. As coisas não se fazem: desenrascam-se. As pessoas não agradecem nem pedem desculpa: atira-se uma piada para o ar a camuflar a razão da desculpa ou a vergonha de agradecer. Da mesma maneira que os meus tios e tias e avós e até primos, todos – mesmo com os seus sotaques exóticos – eram portugueses ao fim de um dia. E, cada verão, tudo era outra vez excelente em Portugal. Como se se fosse português por resignação. Talvez seja esse o caso de todos nós. Talvez seja essa a essência de se ser português: quem constrói tudo de bom e mau, tudo extremado, a partir da resignação.
Comments