As medalhas de ouro conquistadas por três atletas portugueses nos Campeonatos da Europa de atletismo em Torun têm servido, por parte de muitos e com a melhor das intenções, como a prova tangível, gritante e definitiva de que os negros e migrantes têm um papel relevante na sociedade portuguesa. Pelo menos, parece ser isso que se pretende quando tantos republicam as notícias das medalhas, fazendo questão de sublinhar que estes são portugueses negros que uns querem deportar, ou quando um jornal desportivo faz capa com as imagens destes atletas e o título ‘portugueses de bem’, numa clara alusão a um slogan do partido fascista e racista Chega – e, sem dúvida, ao peso exclusivista que esse slogan acarreta e ao retrocesso de décadas na sociedade portuguesa que essa mundividência traz. Devemos ficar felizes por ver jornalistas a tomar posições semelhantes, mais do que a servirem – inocentemente ou a fitar audiências – de caixa de ressonância de um discurso absolutamente abjeto que vinga, sobretudo, pelo próprio facto de o reproduzirmos na tentativa de tentar compreendê-lo ou de compreender como pode (re)surgir, de tão abjeto e anacrónico. O discurso abjeto vinga por ser abjeto. E é repetido por ser tão abjeto. E resulta normalizado, paradoxalmente, por se comprovar abjeto. Por isso, qualquer tentativa de reversão e desconstrução desse discurso é um passo no único caminho possível: a desconstrução de equívocos e a reversão de um crescendo isolacionista e polarizador.
Obviamente que devemos celebrar as vitórias de todos os portugueses em todas as modalidades. Num universo em que o futebol monopoliza de tal forma os media e o gosto por ele é comunicado – deliberadamente – como uma idiossincrasia portuguesa, qualquer notícia sobre outra modalidade é bem-vinda. Num universo de Ronaldos em que aos mais jovens lhes são oferecidos – deliberadamente – um número muito restrito de heróis, sobretudo desportistas, e lhes é comunicada uma noção completamente errada de sucesso, associada à opulência, aos recordes e aos títulos, qualquer exemplo – e não é difícil – que não seja Ronaldo é bem-vindo. Num universo em que os heróis são predominantemente – e deliberadamente – masculinos e brancos, qualquer heroína que fuja a esse estereótipo é bem-vinda. Precisamos – os nossos mais novos precisam – de facto de mais heróis como Auriol Dongmo, Patrícia Mamona e Pedro Pablo Pichardo. Mas precisam também de outros heróis na cultura, no entretenimento, na sala de aula, e, crucialmente, nas conversas em casa.
Onde se falha completamente o alvo ao usar o exemplo dos três atletas portugueses como a prova definitiva de que os negros e migrantes têm um papel relevante na sociedade portuguesa é em se correr o risco de se poder considerar que assim é por serem medalhados. E essa ideia está perigosamente perto da noção de tolerância, que uns magnanimamente oferecem por até haver razões concretas para a relevância de outros. Auriol Dongmo, Patrícia Mamona e Pedro Pablo Pichardo e muitos outros têm de ser celebrados por serem símbolo da nossa diversidade. É essa a medalha e a imagem que devemos ambicionar: a de nos celebrarmos enquanto sociedade transversalmente diversa.
Fotografia: AFP
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