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  • Foto do escritorJose Dias

Lá Fora





Na língua inglesa há uma expressão que subtilmente demarca o anglófono emigrado dos restantes emigrantes de outras nacionalidades: expat. Expat é a abreviatura de expatriate, alguém que está fora da sua pátria. Esta é uma forma muito velada e eficaz de xenofobia. Um inglês nunca usa a palavra emigrant, quem vai, mas parece nunca lhe ocorrerem sinónimos para a palavra immigrant, quem vem. Isto porque, ao contrário do valor quase neutro de expat, emigrant tem uma conotação negativa. Este uso cuidadoso e seletivo das palavras diz muito sobre a forma como muitos ingleses camuflam a visão imediatamente depreciativa que têm do outro.

No português tudo é mais simples: ambas as palavras são pejorativas. A palavra expatriado é geralmente usada na voz passiva – aquele que foi expulso da pátria. E, pelo menos em Portugal, a palavra emigrante é culturalmente depreciativa, quase uma ofensa, e evoca uma realidade e um conjunto de relações de poder de décadas: o emigrante era alguém pertencente à classe absolutamente mais baixa de portugueses que, sem instrução nem quaisquer outros recursos, desempenhava as tarefas mais desprezíveis e menos qualificadas nos países que se reconstruiam no pós-guerra. Eram os trolhas, os biscateiros, as criadas, os operários, os sem-gosto, os com-sotaque, os avec, os que não são daqui nem de lá, os sudras, os intocáveis.

Ser-se emigrante português até há poucas décadas correspondia quase invariavelmente a uma fuga muitas vezes ilusória da miséria da aldeia remota para uma bidonville, um quarto partilhado ou, para alguns e na melhor das hipóteses, uma casa modesta de subúrbio ou cidade industrial. Mas significava também a oportunidade de educar os filhos, de aceder a bens e serviços básicos mas impensáveis na terra de origem, e, para alguns, o viver num país sem ditadura. A expressão ‘dar o salto’ ilustra bem essa noção de ascensão social e económica. Cresci os meus verões, como na canção Mon Enfance do Brel, na cozinha, sentado à mesa, incensado pelo fumo dos cigarros dos homens da minha família, a narrarem estórias da vida em França, em sotaques exóticos. De toda a minha família materna, eu sou o único da minha geração nascido em Portugal. Todos os outros emigraram para França. Este êxodo fascinava-me a excitava a minha imaginação. Apenas anos mais tarde comecei a compreender como os restantes portugueses não emigrados sentiam uma certa vergonha alheia pelos emigrados. Como que se olhar de cima para os que foram tornasse maiores os que ficaram. Não ter ido nunca era visto como uma qualquer falta de coragem. Mas o ter ido, sim.

Hoje eu sou emigrante – ou imigrante, dependendo da perspetiva. Talvez porque faço parte de uma emigração muito qualificada num país com um mercado de trabalho extremamente competitivo em todos os setores, não ouço ninguém em Portugal a referir-se a mim como emigrante. Na maior parte das vezes a expressão para descrever a minha situação a alguém a quem sou apresentado, por exemplo, é ‘está lá fora’, ou ‘vive em Londres’ (parece sempre que não se conhece muitas cidades inglesas em Portugal), ou, muito recorrente no que parece ser uma tentativa de compensar décadas de depreciação para com o conceito de emigrante, um ‘dás aulas numa universidade em Inglaterra’. Obviamente a emigração não está resolvida na cultura popular. Da palavra emigrante a música pimba vai um segundo. Por isso, por vezes há esta forma muito atabalhoada de, em Portugal, se referirem a nós, não vá alguém pensar que esta gente é trolha em França!

Tenho muito orgulho nos meus avós, tios e tias emigrantes. E cada vez mais compreendo aquelas estórias e aqueles dramas partilhados à mesa, entre fatias de pão, talhadas de queijo e copos de vinho. Os dramas deles são muito semelhantes aos meus: o não pertencer a lado nenhum, o ver a terra (a minha Lisboa) mais como uma ideia do que como um lugar, o pânico de perder o chão e as raízes, o medo de que os filhos não nos compreendam nunca, tenham vergonha, não falem, não pensem, não amem na nossa língua. E partilho com eles uma das agonias mais recorrentes: que Portugal na realidade não os tinha como seus. Havia muito recorrentemente o desabafo de como Portugal parecia ser lesto a dar as boas-vindas às poupanças dos emigrantes, mas lento e reticente a acolher os emigrantes. Vinha isto sempre a propósito da falta de apoios para a compra de casa, para o regresso, a burocracia.

No dia passado dia 8, contaram-se os votos dos emigrantes. Senti-me humilhado. Em primeiro lugar, porque houve um número muito significativo de emigrantes que não puderam votar, pois não lhes foi enviado o boletim de voto. Em segundo lugar, porque a validade dos votos foi disputada por PSD e PS como abutres. Lembremos que a Comissão Eleitoral pede aos emigrantes que fotocopiem os seus cartões de cidadão – violando a lei – e anexem essa cópia ao voto no envelope que segue para Lisboa. Muitos emigrantes não quiseram violar a lei e não enviaram a fotocópia do cartão de cidadão, tendo visto os seus votos rejeitados. Em terceiro lugar, porque os votos válidos correspondentes à secção onde estavam votos invalidados foram também, e apenas por esse motivo, invalidados. Por último, e para mim a maior demonstração de como Portugal não resolveu a forma como trata discriminadamente os emigrantes, constatou-se que os perto de um milhão de votantes pelo círculo da Europa valem dois deputados na Assembleia da República. Dois. Se assim fosse para os restantes portugueses, a Assembleia teria vinte deputados no total. O círculo eleitoral do Corvo, nos Açores, com 342 eleitores, o mais pequeno do país, elege o mesmo número de deputados. 171 votos no Corvo correspondem a 500 mil votos de emigrantes portugueses na Europa. De facto, a discriminação inglesa é mais subtil. Para Portugal o português ‘lá fora’ vale literal e matematicamente 2924 vezes menos que o português ‘cá dentro’.

Lembro-me novamente dos verões em Moledo. Dos avós, dos tios, dos primos. Dos livros do Tintin em francês, das tartines au chocolat, dos cigarros Gitanes, dos carros enormes que os traziam quilómetros a fora pelas montanhas até aquele lugar que era na realidade um não-lugar. Talvez eu também já pertença a um não-lugar, e comigo pelo menos um milhão. Pelo menos é certamente isso que o Parlamento do meu país pensa de nós.

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