Chegou-me na semana passada, por via de um colega investigador húngaro, uma carta-apelo ao apoio internacional de – palavras dele – uma investigadora portuguesa que estava a ser censurada e vítima de assassinato de caráter por trabalhar na área dos direitos dos trabalhadores em Portugal. Estranhei e fui ler com atenção. O texto, reproduzido em baixo na íntegra tal como circulou e me chegou, embora não o diga explicitamente, sugere, de facto, que é por a Raquel Varela ser uma investigadora que denuncia atropelos aos direitos dos trabalhadores que está a ser vítima de uma campanha concertada e mediática para a sua destruição. Explicitamente, afirma que essa campanha é concertada e visa destruí-la e à sua família.
Se existe investigadora académica em Portugal com exposição mediática, é Raquel Varela. Quem dera a centenas – centenas – de investigadores académicos portugueses poderem ter a plataforma mediática que Raquel Varela tem para poderem denunciar – eles sim – a precariedade sistémica e perpétua em que vivem e a que são relegados. Gente que trabalha, que faz ciência de ponta nas diversas áreas, que ensina, mas que é muito mal paga ou passa largos períodos sem receber, ou faz tudo isto sem qualquer contrato. Que vive anos – os mais produtivos das suas vidas – de bolsa em bolsa, a adiar planos de vida e de paternidade ou maternidade, alguns a arrastarem a vida adulta na casa dos pais, e a quem é sugerido – velada ou diretamente – que, se continuarem a trabalhar em tais condições, um dia pode ser que sejam recompensados com um contrato na faculdade.
E é assim que as raras vagas para investigadores e docentes que vão surgindo nas universidades públicas portuguesas são quase invariavelmente concursos, alguns pomposamente titulados ‘internacionais’, cujo perfil ideal de candidato é, na realidade, o perfil real de alguém na calha, conhecido, que será recompensado por anos de precariedade ou por simpatia ou afinidade de quem pode naquele momento contratar, lembre-se, para a função pública. Os requisitos para os concursos internacionais obrigam invariavelmente que os candidatos falem português, muitas vezes que tenham já tido um papel relevante na instituição a que se candidatam e – na maioria dos casos – uma ou outra especialidade que exclui por completo todos os outros. São operações meramente administrativas fazendo tudo para não o parecer. Depois há atas – muitas – há rondas – algumas – e um emaranhado burocrático tão português, que sugere transparência, mas que se destina precisamente a tornar todo o processo tremendamente opaco.
É por isso que o caso de Raquel Varela é apenas mais uma conta do longo rosário do nepotismo que existe na academia portuguesa. Varela, ela própria parte do sistema nepotista, vê-se agora sem a via verde com que esperava poder contar e pensou que granjear o ilusório ‘apoio internacional’ faria alguma diferença. A realidade é dura: contra o nepotismo na academia portuguesa não há apoio internacional que valha a quem quer que seja. O que me perturbou no caso Varela – investigadora que respeito do ponto de vista académico e com quem partilho ideais políticos – foi a meia-verdade (que é sempre mentira) que foi usada para pedir apoios. Perturbou-me ver o nome do meu país a rodar num email pela academia internacional como se da Turquia ou da Hungria se tratasse, onde há de facto censura, onde as pessoas são de facto perseguidas pelo que dizem e fazem na academia. Tive de explicar ao meu colega húngaro que em Portugal não existe censura desde 1974, que o governo é socialista com o apoio parlamentar de dois partidos à sua esquerda. Portugal não é perfeito, mas as liberdades que a geração dos meus pais conquistou e que as nossas gerações garantem que se mantenham são demasiado preciosas para que alguém se reclame como sua porta-voz e vítima-alvo de cada vez que as coisas não lhe correm de feição.
Não escrevo contra Raquel Varela, nem contra os que são contratados pela via verde de um perfil que lhes é feito à medida. Não duvido do mérito e dos sacrifícios por que alguns deles passaram. E quase que adivinho que muitos deles vão ser os mais acérrimos críticos de textos como este, incapazes de ver que esta crítica não se destina a eles, mas a algo maior, com medo de que o que conquistaram e o equilíbrio extremamente frágil de um sistema hierárquico bizarro possa ruir. Dá muito trabalho passar uma vida nessa corda bamba e encontrar a posição confortável que nos permite evitar cair. É assim que se prova que o nepotismo é uma faca de dois gumes: é através da defesa do sistema pelas suas maiores vítimas, simples peões do sistema.
Escrevo sim contra quem não quer ver o seu poder nas universidades ameaçado e perpetua, alimenta, beneficia deste estado de coisas. Por preguiça, por elevação do ego, porque é e sempre foi assim, mas perpetuam. E escrevo pelos que nunca terão hipótese de fazer ciência com condições dignas em Portugal e terão de, como eu e muitos, emigrar, deixar famílias e amigos pela paixão pela investigação. Circulasse uma carta aberta pela comunidade científica internacional denunciando o nepotismo na academia portuguesa e a precariedade dos investigadores bolseiros, e eu seria o primeiro a assinar e fazer campanha.
Aqui o email que me chegou no dia 30/9/2021, sem quaisquer edições ou correções ortográficas da minha parte:
Dear all, as you can read a terrible campaign was organize against me and our work, we are doing an international manifesto - please see above some of the people that have already sign, tell me if you sign it, name and institution.
We will just make it public Monday
Warmly
Raquel
In defence of historian and public intellectual Raquel Varela
Raquel Varela, historian of labour and social conflicts and public intellectual in Portugal, has been the target of a character assassination attempt that has exposed the disloyal relations within the academy, the promiscuity between some journalism and the promoters of vilification campaigns and the degradation of democratic life in general, with the growth of fake news and the far right.
A newspaper, Público, accused her, with cover call and photo, of having fraudulently increased her publications, claiming to have an “anonymous denunciation” as a source. Forced by law to publish her right of reply, Varela demonstrated unequivocally that she had never added any publication to her CV, publicly accessible to all, and filed a libel suit. Not content with the answer, an ultra-conservative magazine publishes an article in which Varela is accused of “belonging to an academic Trotskyist network", also involving her family, husband and father, the latter “exposed” as a leader, which effectively he was, of a Maoist resistance organization to the dictatorship and colonial war. Nobody in academia can be indifferent to these methods of terror, attempts to destroy the career and the good name of an international researcher whose work deals with labour rights and the history of revolutions. The academy cannot be the target of this type of methods typical of totalitarian regimes. Science is done with freedom and confrontation of ideas.
A wave of solidarity coming from various quarters, from academics, public figures, union leaders, journalists, intellectuals rose up in Portugal and Brazil against what they consider methods of press necrophilia, echoing “fake news”. Varela is one of the main critical public intellectuals in the country, recognized for her positions in defence of labour rights.
The news were put together implying that the faculty would have withdrawn support to the researcher, which never happened. The newspapers are shielded by the statements of a newly sworn-in direction of the investigation unit from which Raquel Varela recently left, with 27 other researchers, due to differences, among them, in the way they treated their precarious researchers, which led the Group to request at the Faculty the move to another research unit.
This is an exemplary case of how nepotism within a sector of academia and necrophilia in some press seeks to silence an intellectual, a woman whose career has been marked by a central contribution to global labour studies and the opening of academia to society, substantiated by hundreds of lectures and dozens of projects with unions and associations, for her presence for seven years now in a weekly debate program on public television, a program on public radio and dozens of articles in newspapers. Raquel Varela’s public intervention does not shy away from criticizing power; it is guided by the defence of labour rights, placing the centrality of decent work on the national agenda. We do not necessarily subscribe to all of her opinions, but we defend the inalienable right of intellectuals not to be threatened with “vilification campaigns” because they address issues that are uncomfortable for power. Criticism of power is an essential democratic function, particularly in the shadowy times we live in. Without the function of an independent critic, the University, as well as the figure of the intellectual, loses the reason for its existence.
Raquel Varela has published dozens of books and articles on labour history, social conflicts, Portugal and Europe, several of which have been translated into English, German and French. She is president of the International Association for the Study of Strikes and Social Conflicts, member of the Karl Polanyi centre, co-coordinator of the International Network for Labor Studies and editor of academic journals such as Critique – Journal of Socialist Studies and Labor and Society, and of the Wildcat series of Pluto Press. She was the first recipient of the Simone Veil Project Europe scholarship and this year received the Asicom / University of Gijon award for her unique contribution to global labour history. This year she defended her habilitation before an international jury in public exams, where she was unanimously approved.
She is the founder and coordinator of the Observatory for Living and Working Conditions, which carried out 12 surveys on the world of labour in Portugal, which revealed the toxicity of management methods that lead to burnout, ethical suffering, and exhaustion.
This type of methods aimed at intimidating her are intolerable in the press, which echoes internal struggles within the academy, corroded by job insecurity, unhealthy competition, degrading work methods, which can only be fought with cooperation and solidarity among researchers. Everyone’s ideas can and should be criticized, preferably radically. When dealing with people, including adversaries, principles of tolerance and respect must prevail. What we are seeing today is the destruction of this fundamental rule of civility and a replacement of the debate of ideas with personal accusations and slander. The deficit of scientific dialogue, hampered by the social structure of the Universities, plagued by the scarcity of resources and chronic precariousness, is increased by the constitution of feuds, dependent relationships and careerism. This type of campaigns threatens all of us and society as a whole, implying that anyone with a critical voice can become the target of internal campaigns, which find echo in the degradation of the press, which is also increasingly deprived of its original raison d’être – information and formation – by the precariousness of the work of journalists, leading to promiscuity with communication agencies, substituting information for scandal, reason for the “emotional turn”, in times of fake news.
Raquel Varela's voice must not be silenced, whether we agree with her positions or not. We will not abdicate criticism and defence of an academy and journalism based on decent work, labour rights, in the fight against precariousness and social inequality.
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