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Foto do escritorJose Dias

Cem anos

Atualizado: 19 de abr. de 2021

A minha consciência política começou bastante cedo. Cedo percebi que nem todos, mesmo crianças, estávamos no mesmo degrau social. Quando, com os meus 10 anos, ouvi um pai de uma amiga dizer-lhe à minha frente que ela devia lembrar-se sempre que, ao contrário de mim, ela não era filha de uma porteira ou de um pasteleiro, mas de um médico, compreendi logo, ali, desta forma tão violenta para uma criança, que havia diferenças entre nós e que havia quem achasse que as profissões que os meus pais tinham não eram motivo de orgulho. Anos mais tarde ingressei num seminário. Eu achava na altura que essa era a melhor maneira de servir os outros e de dedicar a vida aos menos favorecidos. Tinha 16, 17 anos. Um padre veio falar comigo ao meu quarto e reparou pelo canto do olho, na minha escrivaninha, a peça “A Segunda Vida de Francisco de Assis” de Saramago. Não levou o livro de imediato, mas tentou dissuadir-me de o ler. Semanas mais tarde pediu-mo e nunca mais o vi. O mesmo Saramago levou-me a uma licenciatura em Literatura na Faculdade de Letras. Fiz parte da Associação de Estudantes. Alguns da JCP, muitos não filiados, todos de esquerda. Foram anos maravilhosos. Criámos uma creche para alunos e funcionários para assim facilitar a vida de todos e promover o ingresso no ensino superior de pessoas já com filhos. Lutámos com unhas e dentes contra as propinas. Chamaram-nos “rascas”, ordenaram à polícia que nos dispersasse à bastonada. Fizemos vigílias pela libertação de Timor, que juntaram ex-alunos notáveis de Letras até se desligarem as luzes dos diretos dos telejornais. Organizámos marchas pela memória dos que foram agredidos e morreram na noite de 10 de Junho de 1995. Fomos ameaçados por skins. Como músico, toquei na Festa do Avante muitas vezes, anos seguidos. Primeiro na tenda dos intelectuais, depois no palco 1 de Maio. Olhando agora para trás, foram anos maravilhosos. Nunca militei no Partido Comunista Português, mas ele sempre esteve presente. E eu sempre me revi nos ideais que professa, no Marxismo clássico. É claro que não concordo com todas as posições do partido. Não compreendo como pode confundir ideologia com ditaduras ditas comunistas (uma contradição em si mesma), ou como ainda existe um certo conservadorismo de costumes em alguns segmentos do partido, que olha, por exemplo, para a homossexualidade com muita distância (para usar uma expressão eufemística). Mas o PCP, que hoje faz cem anos, deu-me a mim, aos meus pais e ao meu país muito do que conquistámos. E digo-o no plural porque falo da sociedade como uma realidade muito diversa. Não posso deixar de agradecer e respeitar a memória dos muitos que foram presos, torturados ou morreram para que hoje eu e outros portugueses antes e depois de mim possamos ser livres. Daqui de onde vivo agora, da cidade onde Marx e Engels escreveram o Manifesto Comunista, saúdo todos os companheiros e companheiras. Dizem os outros que temos uma utopia. Nós temos sim um sonho que vemos bem à nossa frente e estamos já a construí-lo todos os dias. Até à vitória final!


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