Eu nunca tinha sido o Outro. Veja-se bem: sou um homem branco, europeu, de meia idade e com educação superior. Não poderia ser mais privilegiado. Sei-o e sinto-o: sou, de facto, privilegiado por ser homem. São inúmeras as situações em que, quando estou acompanhado por uma mulher, há uma distinta diferenciação na forma como somos tratados. A mulher é por norma infantilizada e desconsiderada. Se pedimos indicações juntos, é a mim que mas dão. Se a conversa se torna mais séria em alguns círculos, há um atropelamento sistemático do seu ponto de vista e um zelo excessivo em lhe explicar a ela as coisas. Nunca me perguntaram numa entrevista de emprego se tenho ou planeio ter filhos, se vivo com alguém ou sozinho. Nunca vivi um dia que fosse em que tivesse receio fundado na minha experiência pessoal de me cruzar com um grupo de mulheres. Nunca fui abordado por desconhecidos com sugestões ou convites em tom ameaçador para fazer sexo. Na rua, no trabalho, no transporte público. Sei-o e sinto-o: sou, de facto, privilegiado por ser homem. E também sei e sinto que sou privilegiado por ser europeu. Não sou sistematicamente selecionado para uma revista aleatória nas filas dos aeroportos. Nunca senti que assumissem que provenho de um pais em guerra. Que sou uma de duas coisas: vítima ou opressor. Que o meu inglês é limitado. Sei-o e sinto-o: sou, de facto, privilegiado por ser europeu. E também sei e sinto que sou privilegiado por ser de meia idade. Assume-se automaticamente que sou melhor profissional em detrimento de qualquer pessoa jovem. Que sei mais. Que faço melhor. Que tenho mais. Que sou mais fiável. Sei-o e sinto-o: sou, de facto, privilegiado por ser de meia idade. E também sei e sinto que sou privilegiado por ter educação superior. Vi em primeira mão como os meus pais eram tratados por não terem. Vi como, particularmente em Portugal, os títulos académicos são usados de uma forma parola e mesquinha como que em substituição de títulos aristocráticos. Sei-o e sinto-o: sou, de facto, privilegiado por ter educação superior.
E, no entanto, chegado ao Reino Unido, fui pela primeira vez na vida confrontado com a nova realidade de que agora sou eu o Outro. Em todos os formulários de todos os empregos, de todas as instituições oficiais, de todas as consultas, de todas as inscrições, ali está sempre a pergunta, e geralmente a primeira de todas: sou branco britânico, branco irlandês ou outro branco? Esta necessidade de híper-categorizar em nada acolhe, só exclui, discrimina, ghetifica. Não pretendo de forma alguma comparar o que acabei de descrever com a discriminação de que alguns são de facto alvo grave e inevitavelmente reféns por gerações. Comecei aliás por elencar as inúmeras formas por que sou privilegiado. Mas, se serve de alguma coisa, é sem dúvida para, pelo ridículo, mostrar como pode um homem branco passar meia vida sem sentir qualquer tipo de discriminação. Algo de que é vítima a maior parte da população mundial.
Quando vejo Megan Markle a denunciar a discriminação de que foi alvo, sinto um misto de reações. Por um lado, esta é uma mulher mestiça que usa de forma muito eficaz a sua fama como plataforma para denunciar o racismo, a discriminação sexual e o estigma social da doença mental. Esta é uma mulher mestiça que passou por uma depressão muito grave e que não se calou. E isso é extraordinariamente importante nos tempos em que vivemos. Serviu de exemplo contrastante de alguém que fala, que usa a sua voz e que por isso ganhou e exerceu poder positivo. Serviu de exemplo para tantas jovens negras e mestiças, com depressão ou outra doença mental grave, vítimas de uma ditadura da aparência, que passa tantas vezes por uma noção desajustada do peso ideal, ou de abuso verbal ou de outro.
Mas por outro lado, Megan é, na realidade, um Outro como eu. Que tem imensos privilégios, uma carreira e, no caso dela, uma vida luxuosa. Que não é exatamente uma mãe solteira negra a tentar negociar vários trabalhos ao mesmo tempo. Que teve uma educação. Que teve e tem uma exposição mediática que lhe confere precisamente o poder para controlar uma entrevista daquela forma: onde quer, com quem quer, como quer e em prime time.
Precisamos de novos heróis. Quando se normalizam os heróis, estes deixam automaticamente de servirem de exemplos inspiradores para os que deles necessitam, para passarem a ser mero entretenimento para quem não quer pensar. E o que vi naquela entrevista foi exatamente o que vejo no discurso político estrategicamente multiculturalista e pós-colonialista, na cota de atores de minorias étnicas respeitada da serie televisiva apenas para se alcançar certos canais ou plataformas, na banalização da luta contra o racismo e a discriminação sexual como uma mera narrativa encomendada ou ajustada para se conseguir financiamento ou votos ou apenas atenção. Antes anti-heróis que heróis normalizados.
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(Genevievederivative work: Firebrace, CC BY 2.0 <https://creativecommons.org/licenses/by/2.0>, via Wikimedia Commons)
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